Comer placenta faz bem?
O hábito de ingerir a placenta após o parto vem ganhando popularidade no mundo devido à divulgação de seus possíveis efeitos benéficos, como redução do risco de depressão pós-parto, melhora na recuperação da mulher e aumento na produção de leite. Os métodos para a ingestão são os mais variados, indo desde o uso da placenta crua ou cozida em receitas compartilhadas na internet, até diversas metodologias de encapsulamento, um serviço que surgiu e cresceu nas últimas duas décadas entre mulheres ocidentais de classe média. E quais as evidências científicas sobre riscos e benefícios dessa prática?
Os estudos conduzidos em animais não humanos demonstram vários benefícios fisiológicos e comportamentais da placentofagia (o nome pelo qual é conhecido o hábito de ingerir a placenta). Para esses animais, comer a placenta pode ajudar a limpar o ambiente para que predadores não sejam atraídos. Além disso, já foi demonstrado em alguns desses animais que a placentofagia pode facilitar a criação dos laços entre a mãe e o filhote (o que chamamos de “bonding”) e reduzir a dor na mãe (o mecanismo desse efeito analgésico já está bem determinado em ratos). Algo curioso é que o aumento dos hormônios prolactina e progesterona ocasionado pela ingestão de placenta parece ser específicos para cada espécie, já que a ingestão de placenta humana pelas ratas não causou nenhuma alteração hormonal. Por outro lado, o efeito analgésico parece não ser específico entre espécies e sexo: a ingestão de placenta humana, bovina ou de golfinhos pelas ratas provocou a mesma redução na sensibilidade à dor. Ainda, alguns autores atribuem o efeito analgésico induzido pela ingestão de placenta em animais não à placenta em si, mas ao líquido amniótico que está impregnado nela! Alguns achados em ratas ajudam a reforçar a hipótese analgésica do líquido amniótico e o significado das mães lamberem a própria região genital antes do parto: como o líquido é liberado antes, elas poderiam obter esse efeito analgésico antes mesmo da expulsão dos filhotes ter início.
Dado que praticamente todos os mamíferos placentários têm o hábito de ingerir a placenta (com exceção de mamíferos marinhos, cuja placenta acaba sendo diluída na água após a expulsão) e que muitos estudos demonstraram efeitos benéficos na fisiologia e comportamento animais, parece ser razoável pensar que o mesmo possa acontecer em humanos. Porém, aqui batemos em um ponto importante: as alterações hormonais que ocorrem no corpo da mulher após o parto não são necessariamente iguais às de outros animais. Por exemplo: a nossa produção de leite começa a ocorrer cerca de 30 a 40 horas após a descida da placenta, mas em ratas isso ocorre imediatamente. Nós também temos mecanismos totalmente diferentes de “bonding” com nossos bebês. Além disso, nós somos seres sociais e provavelmente por isso não precisamos comer placenta para nos apegarmos aos filhotes.
Evolutivamente, ao que tudo indica, nós humanos deixamos de comer placenta há mais de 60 mil anos – muito provavelmente porque nós não precisamos disso.
Se esse não é um comportamento determinado biologicamente em humanos, pode-se inferir que há uma boa razão adaptativa para que ele tenha sido eliminado. Durante nossa evolução, os humanos começaram a ter ajuda para parir (ao menos para assistir o parto e segurar o bebê ao nascer) e talvez essa ajuda tenha também tornado desnecessária a placentofagia. Uma possibilidade adicional é que a ingestão da placenta em algum momento tenha se tornado uma prática perigosa, devido à quantidade de toxinas filtradas pela placenta e à rápida degeneração enzimática do conteúdo placentário, que pode oferecer riscos endocrinológicos e imunológicos.
Nos últimos anos alguns trabalhos conseguiram analisar se a ingestão de placenta de fato pode trazer benefícios em humanos. Em um artigo científico publicado esse mês, pesquisadores canadenses avaliaram parâmetros psicológicos e sorológicos em 28 mulheres que consumiram placenta após o parto e 110 que não consumiram (sendo que todas as mulheres do estudo tinham histórico de transtornos do humor). Em todas as análises realizadas (depressão pós-parto, níveis sanguíneos de vitamina B12, avaliação de fadiga e uso de medicamentos para aumentar a lactação) não houve diferença significativa entre o grupo que consumiu e o que não consumiu placenta. Da mesma forma, uma pesquisa conduzida nos Estados Unidos e publicada no ano passado analisou se o consumo de placenta induziria alguma alteração no humor da mãe, no seu apego com o bebê e nos seus níveis de cansaço. O trabalho foi feito com 27 mães, de forma randomizada e duplo-cega (ou seja, nem as mães e nem os profissionais envolvidos sabiam se as mulheres estavam consumindo placenta encapsulada ou placebo). Como resultado, eles não viram diferenças significativas em relação ao humor materno, ao apego com o bebê e aos níveis de fadiga entre as mulheres que ingeriram ou que não ingeriram placenta.
Resumidamente, ao que tudo indica a ingestão de placenta não é um comportamento típico da nossa espécie humana e não traz benefícios.
E quanto aos possíveis riscos? Bom, eles existem sim. Embora relatos de intoxicação sejam bem raros, não se pode negar que a placenta é um tecido com grande facilidade de colonização por bactérias. O Centers for Disease Control and Prevention, órgão estadunidense para o controle e prevenção de doenças, lançou um alerta para os riscos da ingestão de placenta encapsulada em 2017. O alerta surgiu após um caso de infecção bacteriana em um bebê de duas semanas, cujas análises laboratoriais mostraram ter sido originada através das cápsulas de placenta que a mãe estava ingerindo. O bebê desenvolveu uma infecção generalizada causada pela bacteria Streptococcus agalactiae do Grupo B, que estava presente também na placenta encapsulada que a mãe consumia. A infecção é potencialmente fatal, mas após algumas semanas internado no hospital e utilizando os antibióticos adequados, o bebê conseguiu se recuperar.
Mesmo sem evidências científicas que apontem para a necessidade ou benefícios de ingerir placenta após o parto, sabemos que essa pode ser a opção de algumas mulheres. Como é estimado que os serviços de encapsulamento de placenta tenham crescido aproximadamente quatro vezes nos últimos cinco anos em países ocidentais, alguns profissionais de saúde apontam para a necessidade de uma fiscalização desses serviços, assim como ocorre com qualquer produto farmacêutico.
Referências de artigos científicos para saber mais:
Morris E, Slomp C, Hippman C, Inglis A, Carrion P, Batallones R, Andrighetti H, Austin J. A Matched Cohort Study of Postpartum Placentophagy in Women With a History of Mood Disorders: No Evidence for Impact on Mood, Energy, Vitamin B12 Levels, or Lactation. J Obstet Gynaecol Can. 2019 Sep;41(9):1330-1337. doi: 10.1016/j.jogc.2019.02.004.
Johnson SK, Groten T, Pastuschek J, Rödel J, Sammer U, Markert UR. Human placentophagy: Effects of dehydration and steaming on hormones, metals and bacteria in placental tissue. Placenta. 2018 Jul;67:8-14. doi: 10.1016/j.placenta.2018.05.006.
Kristal MB, DiPirro JM, Thompson AC. Placentophagia in humans and nonhuman mammals: causes and consequences. Ecol Food Nutr. 2012;51(3):177-97. doi: 10.1080/03670244.2012.661325.
Notes from the Field: Late-Onset Infant Group B Streptococcus Infection Associated with Maternal Consumption of Capsules Containing Dehydrated Placenta — Oregon, 2016. Weekly / June 30, 2017 / 66(25);677–678. Disponível em: https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/66/wr/mm6625a4.htm