MMS (a “Solução Mineral Milagrosa”) e o autismo
O MMS já está há anos rodando em alguns países e agora tem ganhado força no Brasil. Os defensores alegam que essa “solução mineral milagrosa”, como é conhecida, pode curar autismo, AIDS, câncer, tuberculose, malária e por aí vai. Algumas pessoas vendem as soluções prontas (o que é proibido pela ANVISA) e outras ensinam formas caseiras de preparo. Muitos dizem o MMS é inofensivo, afinal pode ser feito somente com clorito de sódio em água misturado a um ácido (que pode ser até suco de limão). Porém, a reação resulta na formação de uma solução aquosa contendo dióxido de cloro, um produto químico utilizado como alvejante industrial (ou seja, o MMS contém produtos com ação alvejante – apesar de muitos adeptos negarem essa informação).
Os defensores do MMS alegam que essa solução pode matar bactérias e vírus, e assim seria eficaz contra uma série de doenças e condições provocadas por elas (no caso do autismo, por exemplo, é defendida a hipótese de que o excesso de determinadas bactérias intestinais estaria ligado ao aparecimento ou piora de alguns sinais ou sintomas). Aqui temos um ponto em acordo: o dióxido de cloro pode realmente matar bactérias – tanto que é usado como desinfetante. Porém, surgem algumas considerações importantes: qual a exata concentração necessária dessa solução para matar bactérias? Nessa concentração, o MMS pode matar também células humanas? Uma solução desinfetante muito fraca pode não matar uma bactéria sequer. Já uma solução muito forte poderia matar bactérias e tudo o mais que estiver pela frente, incluindo nossas preciosas células.
Vamos agora para o segundo ponto: quais bactérias o MMS poderia matar? O número de bactérias em nosso corpo é tão superior ao número de células, que podemos nos considerar como inquilinos bacterianos – somos 90% bactérias, fungos e vírus e apenas 10% humanos!
Graças aos avanços da ciência nas últimas décadas temos aprendido muito sobre o quanto dependemos das bactérias para sobreviver. Elas são essenciais para nossa saúde, e o desequilíbrio nessas populações bacterianas pode colaborar para o surgimento de diversas doenças – de alergia alimentar até câncer!
Em um intestino saudável, por exemplo, são encontradas 100 trilhões de bactérias, divididas em mais de 40 mil espécies! É por esse motivo que ao passarmos por um ciclo prolongado de tratamento com determinados antibióticos podemos ficar com diarreia – já que algumas bactérias benéficas do intestino acabam morrendo. Então como poderíamos dizer que uma simples solução desinfetante conseguiria matar apenas as bactérias maléficas e estabelecer o correto, delicado, individual e ainda não completamente conhecido balanço bacteriano necessário nos nossos mais diversos órgãos? Como vocês podem ver, isso seria extremamente improvável!
Quanto aos vídeos, posts e relatos defendendo bons resultados com o uso do MMS, quem garante que o efeito anunciado é verdadeiro? Ainda, mesmo que realmente pareça verdadeiro para quem usa ou para quem acompanha as crianças em tratamento, quem garante não ser uma terapia com efeito placebo? Vale lembrar que a comercialização do MMS já foi proibida em muitos países pelos seus respectivos órgãos de saúde oficiais, devido aos extensos relatos de reações adversas, incluindo: náusea, vômitos, desidratação e alterações na pressão arterial que podem ser potencialmente fatais. Estudos em camundongos recebendo baixas doses de clorito de sódio por meses ou anos relataram o aparecimento de lesões estomacais (hiperplasia, ulceração, inflamação crônica e edema), lesões renais e aumento no tamanho do fígado e do baço. Além disso, estudos avaliando o efeito de baixas doses de dióxido de cloro em filhotes de camundongos revelaram atrasos no neurodesenvolvimento e redução na formação de sinapses cerebrais.
Mesmo que uma terapia aparentemente não ofereça riscos agudos ou crônicos (o que não é o caso do MMS, como já foi documentado em diversos relatos de intoxicação às agências sanitárias mundiais), não podemos nos ater somente a comentários de quem já testou e disse ser efetivo. Pensem bem: quantos medicamentos eram uma promessa de cura ou de grande melhora para várias condições, e foram descontinuados após anos de pesquisas rigorosamente controladas, pois seus efeitos estavam aquém do desejado, ou surgiram reações adversas perigosas?
Novas metodologias de tratamento não podem ser baseadas em experiências individuais. É preciso que não somente a eficácia, mas também a segurança de um novo tratamento seja cientificamente testada, tanto em modelos experimentais quanto em seres humanos.
No caso de efeitos do dióxido de cloro em humanos, esses parâmetros foram testados apenas quanto ao seu uso como desinfetante ou enxaguante bucal antiplaca. Nesse sentido, existem vários artigos científicos publicados demonstrando reações adversas resultantes da inalação do gás produzido durante a desinfecção de superfícies – e que ocasionaram até internações por problemas respiratórios. Quanto ao uso como enxaguante bucal, um trabalho não demonstrou muito efeito na redução de placa bacteriana (o efeito foi inferior ao de um enxaguante herbal) e outra pesquisa demonstrou seu potencial genotóxico nas células epiteliais da cavidade bucal, desencorajando então seu uso prolongado.
Mesmo os medicamentos que passam por anos ou décadas de pesquisa e finalmente chegam ao mercado não estão sujeitos a serem retirados. Além da possibilidade de novas reações adversas serem relatadas com o uso do medicamento em larga escala, ainda temos casos de medicamentos recolhidos do mercado devidos a erros pontuais no controle de qualidade das indústrias farmacêuticas. Agora, como garantir a qualidade de um remédio potencialmente perigoso que é feito em casa ou comprado clandestinamente? Você confiaria, por exemplo, em uma pílula anticoncepcional caseira? Nesses casos não há qualquer controle de qualidade sobre o que está sendo ingerido, e isso pode ser ainda mais grave quando falamos de produtos tóxicos administrados em pessoas que não podem não conseguir expressar seus sintomas.
Agora, tirando todo o risco inerente ao uso do MMS e supondo que ele fosse realmente eficaz na cura das condições a que se propõe, onde estão todas as pessoas curadas pelo MMS? Se essa substância vem sendo utilizada em diversos países há mais de duas décadas, por que não há um único relato de caso de sucesso na literatura científica? Por que nenhuma indústria farmacêutica teria se interessado em lançar esse produto, de forma padronizada e com a qualidade controlada, em forma de medicamento? Usar uma matéria-prima extremamente barata, que pudesse ser padronizada e comercializada em diferentes formulações farmacêuticas para o tratamento de diversas condições, com um alto valor agregado e a ser utilizado por uma grande parcela da população seria um negócio altamente lucrativo! A questão é que para isso seria necessário demonstrar por vários testes clínicos que o MMS é eficaz e seguro – e isso nunca aconteceu.
Para quem defende o uso do MMS, não estamos aqui para brigar, e sim para trocar EVIDÊNCIAS e aprender mais. Qualquer evidência científica de segurança e eficácia será analisada.
Para quem quiser saber mais, abaixo estão os artigos científicos comentados no texto:
Pasolli E et al. Extensive Unexplored Human Microbiome Diversity Revealed by Over 150,000 Genomes from Metagenomes Spanning Age, Geography, and Lifestyle, Cell, 2019. DOI: 10.1016/j.cell.2019.01.001.
Integrated Risk Information System (IRIS), U.S. Environmental Protection Agency. Chemical Assessment Summary National Center for Environmental Assessment. Disponível em: https://cfpub.epa.gov/ncea/iris/iris_documents/documents/subst/0648_summary.pdf.
ANVISA. Proibição de venda de produtos clandestinos. Publicado no DOU em 04/06/2018. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/16924506/do1-2018-06-04-resolucao-re-n-1-407-de-1-de-junho-de-2018-16924430.
Durbakula K et al. Genotoxicity of non-alcoholic mouth rinses: A micronucleus and nuclear abnormalities study with fluorescent microscopy. J Investig Clin Dent. 9(2):e12309, 2018. DOI: 10.1111/jicd.12309.
Siddeshappa ST et al. Comparative evaluation of antiplaque and antigingivitis effects of an herbal and chlorine dioxide mouthwashes: A clinicomicrobiological study. Indian J Dent Res. 29(1):34-40, 2018. DOI: 10.4103/ijdr.IJDR_391_16.
Qinrui Li et al. The Gut Microbiota and Autism Spectrum Disorders. Front Cell Neurosci. 11: 120, 2017. DOI: 10.3389/fncel.2017.00120.